Na faculdade, meu professor de história do cinema brasileiro definiu certa vez Jean-Claude Bernardet como “a biruta do cinema brasileiro”, o crítico que, no calor dos acontecimentos, era capaz de perceber o clima e apontar os rumos tomados pela produção naquele dado momento. Além disso, conseguir perceber e descrever as mudanças da conjuntura do cinema no Brasil.
A fotografia do momento era a grande virtude de JCB. De origem belga e com bagagem cultural vinda desde a adolescência, JCB era sagaz em perceber os movimentos do pensamento do meio cultural. Mais que um crítico acurado, ele foi um ótimo investigador dos mecanismos ideológicos dos cineastas e seus filmes, como sua grande intuição em Brasil em tempo de cinema de que, apesar de desejar falar pelo povo, os filmes da primeira hora do Cinema Novo expressavam as angústias, pontos de vista e ideologia dos intelectuais que os realizavam.
JCB não foi, na minha opinião, o melhor dos analistas de filmes em si, por vezes ignorando nuances e até mesmo utilizando descrições incorretas. Cometeu injustiças com alguns filmes do Cinema Novo para sustentar sua tese, ignorou as ambiguidades de Viramundo, de Geraldo Sarno, em sua análise em Cineastas e imagens do povo, para transformá-lo em modelo negativo de documentário sociológico sobre o povo; elogiou a coragem de Ladrões de cinema, de Fernando Coni Campos, sem contar aos leitores que ele, Jean-Claude, colabora no filme como ator. Tinha suas limitações como escritor, talvez pela dificuldade do estrangeiro no domínio pleno do idioma, o que faz com que (de modo positivo) as ideias gerais dos textos sejam mais fortes que os textos em si.
Se não foi um analista detido como Ismail Xavier ou orgânico como Gustavo Dahl e David Neves, nem um escritor inventivo como Paulo Emílio ou Jairo Ferreira, foi ímpar sua capacidade de destrinchar a ideologia da produção nacional e discutir as próprias discussões sobre cinema no país e como elas refletiam o tempo. Só JCB poderia colocar na mesa e dissecar ideias de “povo", “popular” e “nacional” no cinema brasileiro sem cair em proselitismo - algo que, curiosamente, produtores e cineastas fizeram abertamente com as postagens de Bernardet em redes sociais nos últimos 20 anos.
Cinema brasileiro: propostas para uma história é possivelmente o melhor livro sobre cinema no Brasil já escrito. Nele, JCB traça uma história do cinema brasileiro a partir de “problemas”, deixando a cronologia da produção cinematográfica de lado. Mostra como questões da realidade criam ideias que se materializam na produção e como a história do cinema brasileiro é feita mais desses problemas que de soluções, uma história de impasses que levam a filmes e não o contrário. Outro ponto alto de sua produção é Historiografia clássica do cinema brasileiro, onde discute o entendimento e a construção da história do cinema nacional a partir dos equívocos ideológicos de críticos, historiadores e cineastas. Levanta questionamentos e propõe contra-narrativas sobre o como o Brasil encara a história de seu cinema, num momento de vazio da produção após o fim da Embrafilme. Nesses dois livros, JCB aponta como o cinema brasileiro é menos uma linha contínua de produção de filmes que uma disputa de ideias no campo cultural, dadas as dificuldades materiais para se estabelecer uma “instituição Cinema” plena no Brasil.
Considero esses dois livros muito acima do restante de sua produção, principalmente sobre cineastas específicos (O voo dos anjos e Caminhos de Kiarostami), que considero mais fracos do que os dedicados a problemas ideológicos ou culturais. Independente disso, o principal é como a inquietação de JCB é inspiradora. Não se repetiu enquanto pensador, buscando novos desafios e temas ainda não explorados, mesmo quando isso levava a um livro menos interessante (como O autor no cinema, por exemplo). Enquanto muitos acadêmicos estudam os mesmos filmes e cineastas por anos a fio, JCB flutuou por diferentes matérias. Em Trajetória crítica, coletânea de artigos de jornais e revistas da primeira metade de sua carreira, faz um comentário crítico a si mesmo junto aos textos. Na nova edição de O autor no cinema, convidou o crítico Francis Vogner dos Reis, com quem tem algumas diferenças intelectuais pontuais, a debater com o texto original, criando uma nova obra. A contingência sempre fez parte de seu trabalho intelectual e JCB se recusou a ser um monolito, por mais prestígio que tivesse como intelectual.
É esquisito, então, que ao abandonar a crítica e se voltar para a frente das câmeras JCB tenha assumido um papel de “pesquisador performático de si mesmo", aceitando ficar nesse papel até o fim da vida. Se JCB negou enquanto pensador a ser um monumento, como ator ele foi uma cópia de si mesmo o tempo todo. Apesar dos elogios a seu trabalho ativo como ator, é o momento menos interessante de sua obra. Aqui e ali há brilharecos, mas JCB apoiou-se - ou foi colocado ali - numa espécie de “anti-pedestal”: ao se doar como sujeito frágil pesquisando sua própria persona, erigiu um monumento , em negativo, de si, de sua decomposição física - especialmente a questão da cegueira crônica. É a contradição fundamental de A destruição de Bernardet, um filme de elogio “ao contrário”, feito de ataques e críticas. No fundo, um deboche do monumento contra as pedras atiradas nele.
Prefiro ficar com o crítico sagaz que me assombrou quando eu desejava entender que raios acontece com o cinema brasileiro, que parece nunca “dar certo". No fundo, esse JCB sempre se recusou a explicar o que simplesmente não precisa de explicação, mas de ação.
cardápio Jean-Claude Bernardet, constelação de cinema
Ladrões de cinema | dir. Fernando Coni Campos - 1977 - 106 mins
Após roubar o equipamento de filmagem de uma filmagem hollywoodiana no Rio de Janeiro, um grupo de moradores da favela decide fazer um filme sobre a Inconfidência Mineira na comunidade. Com um dos melhores elencos da história do cinema brasileira, o filme de Fernando Coni Campos foi o contraponto ao que Bernardet chamou de “espaço legal”. Filmes como Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, em sua crítica disfarçada à ditadura militar age dentro de limites impostos pelo regime militar, tanto de modelo de produção quanto de temas a serem abordados pelas obras. Já Ladrões de cinema, ao se colocar à margem, explode esses limites, confrontando de maneira mais direta o regime autoritário da época. Além disso, tem uma grande celebração da carnavalização e do cinema popular.
São Paulo Sociedade Anônima | dir. Luiz Sérgio Person - 1965 - 111 mins
São Paulo Sociedade Anônima foi um dos cavalos de batalha de Bernardet nos anos 1960. O filme foi defendido como um grande exemplo redentor do cinema autoral brasileiro em sua crise pós-golpe de 1964, quando a ideia de falar pelo povo e uma revolução popular se esvazia. Quando JCB escreve Brasil em tempo de cinema e coloca o filme de Person no centro do debate por sua qualidade, Terra em transe ainda existia. Até ali, a crise interior do pequeno burguês Carlos, no centro industrial paulista, se espraia como linguagem até o esvaziamento. Para Bernardet, Carlos é uma figura de crise da classe média intelectual diante do fracasso de seu projeto num filme que consegue transformar essa crise em forma artística.
A noite do espantalho | dir. Sérgio Ricardo - 1974 - 92 mins
Jean-Claude Bernardet atuou, em paralelo à crítica, como roteirista em alguns poucos filmes. Seu primeiro trabalho no roteiro (e um dos mais famosos) foi O caso dos irmãos Naves, filme seguinte de Luiz Sérgio Person a São Paulo S.A. Nos anos 1990, o nome de Bernardet voltou a chamar atenção como roteirista com Um céu de estrelas, de Tata Amaral. Entre um e outro, JCB foi corroteirista deste musical de cordel experimental dirigido pelo cantor e compositor Sérgio Ricardo com Alceu Valença no papel principal. A noite do espantalho retorna ao locus nordestino do Cinema Novo abordando a opressão do coronelismo porém numa mistura de psicodelia nordestina com teatro de arena a céu aberto no sertão.
Disaster movie | dir. Wilson Barros - 1979 - 32 mins
Se JCB veio a se tornar um ator performático requisitado por cineastas autorais já nos anos 2000, esse média-metragem de trabalho de conclusão de curso da ECA-USP mostra o então professor e crítico num personagem cômico dentro deste anárquico filme coral de personagens “achados e perdidos” na cidade de São Paulo.
São Paulo Sinfonia e Cacofonia | dir. Jean-Claude Bernardet - 1994 - 39 mins
Uma homenagem de JCB a São Paulo através do retrato da cidade pelo cinema. O trabalho mais ambicioso de Bernardet como diretor.
lista insone
Eu tenho vivido noites de insônia recorrentemente. Em muitas delas, eu penso em listas temáticas de filmes.
Os melhores livros de Jean-Claude Bernardet
Cinema brasileiro: propostas para uma história, 1979
Historiografia clássica do cinema brasileiro, 1995
Brasil em tempo de cinema, 1967
Cineastas e imagens do povo, 1985
Trajetória crítica, 1978
antes de partir
Escrevi um texto em 2015, debatendo com Jean-Claude Bernardet sobre seu comentário do filme De pernas pro ar 2. Hoje tenho consciência de que esse texto foi a porta de entrada para minha tese de doutorado, que transformei em livro (em breve, se Deus, caso ele exista, ou algum editor quiser…): como as principais questões da vida brasileira no século XXI se materializaram em forma artística nos filmes. O texto pode ser lido aqui.
Se você curtir Ladrões de cinema tem um debate ótimo com Léa Garcia e Antônio Pitanga, mediado por Juliano Gomes, no IMS. Dá pra ver aqui.
Tem links para todos os filmes, afinal meu desejo é fazer as pessoas verem mais filmes, por mais difícil que seja.
Importante: os filmes da Locadora do povo ficam disponíveis por 36 horas depois da publicação desta niusla.
seja rebelde: veja filmes!
Ajude a aumentar essa conversação.
Bom em ver o retorno da Conversação! Viva Jean-Claude Bernardet
Só um adendo: o Bernardet e o Capovilla trabalharam numa versão do roteiro da Noite do Espantalho em que o filme seria ambientado em São Paulo. Quando o Sérgio conseguiu viabilizar a filmagem em Pernambuco, o roteiro mudou, mas o Sérgio decidiu manter o crédito deles. Fiz uma breve entrevista com o Bernardet sobre isso pro meu TCC, em 2016.