Nunca fui ao Festival de Cannes. Provavelmente nunca irei. Cannes é um evento para eleitos, escolhidos do bom deus das finas artes, os poucos sujeitos agraciados com a ventura do talento, rodeados por outros bem-aventurados designados para fotografar, criticar, historicizar, noticiar o dia-a-dia deste panteão cinematográfico.
Não vou aqui fazer um histórico deste magnânimo evento. Isso é possível de encontrar no site do próprio festival, em matérias jornalísticas e livros dos mais diversos tons e relatos - não faltam narrativas para cobrir os grandes eventos da humanidade. Quero aqui dar um humilde pitaco sobre o significado de importante randevu de estrelas no cinema para os curiosos sobre como funciona um festival desses. Isso porque a mídia cultural brasileira não se interessa por relatos mais profundos, mas pela superfície mais impactante do que lá ocorre - quem veste o que, quem está lá, como o público recebe os filmes.
Aqui cabe o primeiro fato importante - e óbvio: o Festival de Cannes não é um evento para o público. Ele tem público, obviamente; porém não o "público”. Não é incomum imagens de pessoas pedindo ingresso para assistir determinado filme. As sessões são, em sua maioria, para convidados, imprensa e pessoas da indústria. Homens e mulheres comuns não foram agraciados com entradas para as exibições, exceto alguns poucos sortudos abençoados pelas mãos caridosas de algum ser supremo que, num gesto benevolente, doou um ingresso.
Isso explica também um segundo fato importante - menos óbvio. Quando os jornais noticiam que tal filme foi “aplaudido efusivamente por 10 minutos”, o que está ausente na reportagem é que este fato é comum. Insisto: todos os presentes ao festival são os/as eleitos/as, ungidos pelos deuses do cinema. Ninguém merece desprezo nesse caso; nem é de bom tom. Nos raros casos em que os aplausos se calam, aparecem as vaias. Cannes é o lugar de extremos, da excepcionalidade. Não tem meio termo quando o filme está na Croisette.
E o mais importante: o que significa o Festival de Cannes para o cinema? O jornalismo cultural brasileiro faz o evento parecer uma premiação como qualquer outra. Cannes não é o Oscar. Os filmes não concorrem automaticamente à Palma de Ouro, não é qualquer obra que pode chegar lá. Só películas selecionadas a dedo pelos curadores têm essa oportunidade. Ao contrário das premiações anuais, decididas no voto, a Palma de Ouro é uma dádiva. Os vencedores são decididos por um grupo de notáveis em reuniões mais próximas do conclave papal que da eleição para presidente.
Desde sua criação, o Festival de Cannes se colocou ao mundo como o maior evento da arte cinematográfica do planeta. Durante décadas, a Côte d’Azur foi palco da ponta de lança do cinema de autor mundial. Por lá passaram grandes cineastas como Michelangelo Antonioni, Luis Buñuel, Jean-Luc Godard, Martin Scorsese e Glauber Rocha. O cinema de arte foi perdendo seu significado histórico a partir dos anos 1990 e, por isso, Cannes não parou no tempo, se aproximando mais e mais dos grandes produtores.
Os grandes festivais de cinema ao redor do globo funcionam como um evento de moda. Na frente, a vitrine, os desfiles das marcas mais chamativas do momento. Lá atrás, o galpão com o mercado onde as transações comerciais acontecem. Assim também com Cannes. A seleção oficial é um grande desfile das grandes grifes atuais do cinema, algumas mais consolidadas, outras buscando se firmar no panteão. As mostras paralelas trazem outras tendências, algumas que já passaram pelo palco principal, outras que podem florescer. O principal é o que acontece nos bastidores: os negócios do Marché du Film, lugar onde a máquina roda de verdade. Enquanto os mortais discutem quem merece determinado prêmio, ou qual o melhor filme da seleção, o capital capitaliza os grandes cabeças da indústria.
Cannes é a Semana da Moda de Paris do cinema. E como as grandes fashion weeks do mundo, ela cria prazeres e horrores, atiça comentários jocosos e deslumbra os súditos iludidos. Principalmente, desperta curiosidade para os filmes - os exibidos lá e os que ainda serão produzidos a partir dos negócios fechados lá. Quanto mais interesse pelos filmes exibidos na Croisette, mais negócios que, por sua vez, serão filmes exibidos lá futuramente para despertar interesse do público para que mais negócios sejam fechados… E assim a nave-mãe continua sua viagem com os poucos escolhidos do bom deus, o bom deus da indústria de arte do cinema. Fiat lux.
cardápio cannes
Nest’A conversação, indico alguns bons vencedores da Palma de Ouro em Cannes que talvez você nunca tenha visto.
Othello | dir. Orson Welles - 1951 - 93 mins
Shakespeare já teve muitas adaptações para o cinema em diversos momentos do século XX. Algumas mais convencionais, como o ciclo de transposições do dramaturgo bretão realizado por Kenneth Brannagh, ou as dirigidas pelo ator Laurence Olivier; outras fora da caixinha, como o Hamlet-mulher, ainda no cinema silencioso, estrelado por Asta Nielsen, o Rei Lear doidão de Jean-Luc Godard ou o Ricardo III de Al Pacino.
Mais perto desse segundo grupo está o Othello, dirigido e estrelado por Orson Welles, vencedor da Palma de Ouro em 1952. Feito com baixo orçamento, esta adaptação shakespeariana de Welles está distante de seus primeiros trabalhos hollywoodianos, especialmente de Cidadão Kane. A fluidez narrativa dá lugar aqui a um peso da ambientação, um clima soturno que permeia cenários, maquiagens e composição dos planos. Como se o início gótico em Xanadu dominasse toda a obra. As raízes de Welles no palco estão aqui mais que em seus filmes anteriores sem perder aquilo que faz a força do cinema na plasticidade da imagem. As soluções visuais de Welles para driblar os problemas orçamentários são saborosamente instigantes. Uma prova de que não dá para fazer teatro no cinema, nem cinema no teatro, mas um mutante entre os dois que ambos saem ganhando quando cada arte ocupa seu lugar.
Disponível no Belas Artes a la carte.
Os guarda-chuvas do amor | dir. Jacques Demy - 1964 - 92 mins
A obra de Jacques Demy é conhecida por sua leveza ao tratar de temas pesados, as cores radiantes e a releitura do musical. Os guarda-chuvas do amor é seu grande filme de harmonia desses três eixos. É provavelmente seu filme mais conhecido e não por acaso. Tem cores, música boa de Michel Legrand sem parar, Catherine Deneuve construindo sua persona como uma herdeira loira de Audrey Hepburn, uma câmera leve para retratar uma tragédia amorosa. A receita demyniana do sucesso.
Disponível no Telecine Play.
O piano | dir. Jane Campion - 1993 - 120 mins
O piano foi um filme que causou muito frisson no circuito de arte quando ganhou a Palma de Ouro e foi indicado ao Oscar de melhor filme. Hoje é a coisa mais comum do mundo esse casamento Hollywood-Croisette, mas na época não era. Além de ser a primeira mulher a ganhar o prêmio principal em Cannes, Campion virou um grande nome do cinema mundial com o sucesso de bilheteria de um drama ambientado no século XIX, na Nova Zelândia, com uma personagem muda e tensão erótica forte (marca do melhor que Campion produziu em cinema). Como em vários filmes da diretora, é o elenco que chama a atenção. Um cinema de silêncios, olhares e gestos favorece - ou só existe por conta disso - o bom trabalho das atrizes e atores.
Disponível na Locadora do Povo.
O gosto da cereja | dir. Abbas Kiarostami - 1997 - 99 mins
Abbas Kiarostami é um dos maiores cineastas que viveu entre os anos 1980 e 2000. Fez obras importantíssimas do cinema autoral nesse período, desde filmes mais leves como Onde fica a casa do meu amigo? a experimentos ousados como Dez e Five - Hommage to Ozu. Nos anos 1990, Kiarostami conquistou de vez a Europa com filmes revisitando o interior do Irã com personagens que vagam por estradas e caminhos tortuosos. Principalmente, personagens que se deslocam. Muitas vezes sem rumo, e até sem razão. Foi o cineasta do movimento, um dos artífices do que depois ficou conhecido como “estética de fluxo”.
O gosto da cereja sintetiza algumas dessas questões da poética de Kiarostami. O deslocamento, o personagem perdido, o olhar para a paisagem, os caminhos tortuosos, o uso de atores não-profissionais, as tramas morais bem simples, mas que revelam um cosmo das microhistórias iranianas contemporâneas. A Palma de Ouro aqui é o reconhecimento de uma obra importante - que ainda daria muitos frutos antes da morte do cineasta em 2016.
Disponível no Reserva Imovision.
Elefante | dir. Gus Van Sant - 2003 - 81 mins
Sou um grande admirador da trilogia dirigida por Gus Van Sant, formada pelos filmes Gerry, Elefante e Últimos Dias. Além do signo da morte, são filmes em que o estado-unidense explora a potência do plano-sequência em longas travessias pelo espaço, investigando o tempo performático dos corpos dos atores no espaço.
Talvez pela Palma de Ouro, Elefante tenha se tornado o mais conhecido e comercial dos três filmes, mesmo não sendo o melhor (que, na minha opinião, é Gerry). É uma releitura do massacre de Columbine com uma narrativa caleidoscópica acompanhando diferentes personagens no cotidiano da escola onde ocorreu a chacina. Elefante é sensível, violento, experimental, contundente, imaginativo. Tudo ao mesmo tempo.
Além disso, o trabalho de fotografia do finado Harris Savides é sensacional. Já escrevi em outr’A conversação que acho Savides um dos melhores diretores de fotografia estado-unidense do século XXI e a maior perda cinematográfica recente. Seus trabalhos são plasticamente complexos sem chamar a atenção para artifícios. O oposto de um Christopher Doyle da vida.
Disponível no HBO Max.
Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas | dir. Apichatpong Weerasethakul - 2010 - 114 mins
A primeira vez que vi Tio Boonmee, durante a Mostra de Cinema de São Paulo, dei uma cochilada e, quando acordei, me senti perdido no filme. “Caramba, dormi meia hora!", pensei. Na revisão, meses depois, percebi que me lembrava de tudo e só então me dei conta de que, na verdade, eu não dormi nada, só dei uma piscadinha mais larga e se eu estava me sentindo perdido, era pela proposta do filme mesmo.
Isso porque Tio Boonmee é, talvez, o mais “normal” e explicativo dos filmes de “Joe” Weerasethakul. O cineasta tailandês ficou conhecido no circuito de arte pelos filmes espirituais, com histórias sensíveis, muitas delas com uma forte ligação com a natureza, quebrando a lógica de causa e efeito da narrativa convencional. O vencedor da Palma de Ouro de 2010 segue os preceitos do cinema de seu realizador, mas tudo um pouco mais amansado, se tornando seu filme mais palatável.
Além disso, identifico nessa Palma de Ouro para Tio Boonmee um ponto de virada no festival francês. Depois de 2010, o evento se aproximou mais de Hollywood e de grandes produtores europeus, relegando os cineastas mais voltados à pesquisa de linguagem para mostras paralelas ou festivais menores, como Locarno e Roterdã. Não bastava ser uma grife do cinema de arte; agora para ser aceito na Croisette, era preciso ser também rentável. O que, no fim das contas, piorou o nível da competição de Cannes.
Disponível no Reserva Imovision.
lista insone
Eu tenho vivido noites de insônia recorrentemente. Em muitas delas, eu penso em listas temáticas de filmes.
Os piores vencedores da Palma de Ouro
Dheepan, 2015, dir. Jacques Audiard
Triângulo da tristeza, 2022, dir. Ruben Östlund
A fita branca, 2009, dir. Michael Haneke
A missão, 1986, dir. Roland Joffé
Titane, 2021, dir. Julia Ducournau
antes de partir
O que vocês acham do Festival de Cannes? Qual sua Palma de Ouro favorita? E o pior vencedor do prêmio?
Obrigado à Raquel Toledo pela revisão final do texto.
Tem links para todos os filmes, afinal meu desejo é fazer as pessoas verem mais filmes, por mais difícil que seja.
Importante: os filmes da Locadora do povo ficam disponíveis por 36 horas depois da publicação desta niusla.
seja rebelde: veja filmes!
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Fiquei curioso em relação a sua opinião sobre "A Fita Branca". Nunca parei pra ver pois o Haneke não me interessa tanto assim, mas sempre vi este filme sendo comentado como um dos melhores dele.
Gosto muito de A Fita Branca, me surpreende que você não curta! Mas também de Amor, Tio Boonmee, Entre os Muros da Escola, Pulp Fiction, Orfeu Negro... Não curto tanto Titane e Árvore da Vida