Há alguns dias, eu estava num jantar da família da minha namorada quando minha sogra, sem papas na língua, perguntou “Raul, você gosta mesmo de filme? Porque você não gosta de nada, só fala mal dos filmes. Tem algum que você gosta? Diz aí um filme que você gosta…”
Entendo demais a reação dela. Quem me acompanha nas redes sociais deve estar com um sorrisinho no rosto. Eu também estou. Porque é uma situação comum, especialmente se a pessoa só olhar a quantidade de estrelinhas no meu Letterboxd. É semelhante às chacotas dos amigos e conhecidos sobre já saberem que eu vou falar mal do filme que todo mundo está gostando. Como diria Luxa, “pertenxe ao futebol".
Me lembrei de uma anedota contada por um professor meu. Disse ele que, ao final de um semestre de uma disciplina sobre linguagem cinematográfica, um aluno veio agradecê-lo pelas aulas e disse que finalmente entendeu porque os filmes que ele gostava na juventude eram ruins. Meu professor disse que isso o fez pensar muito e mudou o modo como ele passou a lecionar.
Acontece que muita gente acha que amar cinema é gostar de todo filme lançado. Amo ver filmes, amo até mesmo me irritar com eles. E, principalmente, os filmes que gosto, eu gosto muito. Muito mesmo. A ponto de decorar todas as informações possíveis, lembrar de cenas, diálogos, gestos, olhares, sonhar com planos do filme.
Em um importante texto do crítico francês Jean Douchet, publicado na revista Cahiers du Cinéma, em 1961, A arte de amar, o autor pontua que “a crítica é a arte de amar. Ela é fruto de uma paixão que não se deixa devorar por si mesma e sim aspira ao controle de uma lucidez vigilante". Mas o principal é que “ela consiste numa busca incessante pela harmonia no interior do binômio paixão-lucidez. Se um dos dois se impõe ao outro, a crítica perde grande parte do seu valor".
Esse texto faz parte da minha formação e recomendo a todos a leitura. Ele diz muito sobre o que é esse sujeito estranho, o crítico. Uma pessoa que ama filmes. Ama odiar (muitos) filmes. E, principalmente, ama amar demais alguns (poucos) filmes.
Em homenagem à minha sogra Ana Marília e aos meus amigos de chacota, as indicações dessa primeira newsletter são alguns dos meus filmes preferidos na vida, filmes que eu amo como se fossem da família ou melhores amigos.
clássico é clássico e vice-versa
Rastros de Ódio | dir. John Ford - 1956 - 119 mins
Um filme com um caubói racista é seu filme favorito? Bem, colocando desse jeito parece um absurdo. Mas essa é uma das capacidades do cinema enquanto arte: ver a história de um sujeito desprezível por duas horas e perceber a humanidade que existe no mundo. A ficção, no cinema, cria um mundo que espelha, distorce ou, como nesta obra-prima de John Ford, amplifica questões do mundo.
Mas voltando do início: meu filme favorito da vida, com direito a uma tatuagem na panturrilha direita, é um faroeste da terceira fase da carreira de John Ford, quando os grandes mitos do Velho Oeste estão sendo retrabalhados pelo "cacique da Irlanda”, como o chamava Glauber Rocha.
Ethan é um veterano da Guerra de Secessão retornando para casa. Na chegada ele encontra seu mundo completamente transformado: seu irmão casou com sua ex-namorada, com quem teve uma filha e adotou um jovem órfão indígena. Ele já não conhece ninguém. As pessoas que ficaram, lembram dele de maneira difusa. Depois de um ataque de indígenas à casa da família, sua sobrinha é sequestrada. Ethan e o jovem sobrinho, que ele repudia, saem em busca da garota, sem nenhuma garantia de encontrá-la.
O título original em inglês, The Searchers, aponta essa viagem. Uma Odisseia ao contrário, com vários sinais do mito original de Homero invertidos. Aqui é Odisseu quem vai atrás do filho, na verdade, a sobrinha, filha de seu irmão com sua Penélope, que não o esperou. Telêmaco é o sobrinho rejeitado por Ethan, aquele que será seu grande companheiro de viagem. O vilão é o ciclope Polifemo chamado Scar (inspiração para outro Scar, o de O Rei Leão) mas que não vai devorar ninguém, pelo menos não fisicamente. Além disso, tem o plano mais bonito da história do cinema e que mostra toda a potência da imagem dessa arte - a imagem que ilustra o filme aqui é um quadro do plano.
Bem, eu poderia falar horas sobre o filme - um dia quero escrever um livro só sobre a cena final. Mas isso aqui é só uma indicação. Veja e tire suas próprias conclusões.
O filme está disponível para alugar no Prime Video, na Apple+ e no GooglePlay
filme-conforto
Bom Trabalho | dir. Claire Denis - 1999 - 93 mins
Sabe aquele filme que te deixa sempre bem? A cineasta francesa Claire Denis é tão impressionante que vários dos filmes dela poderiam ocupar esse lugar. Mas Bom Trabalho tem um lugar especial no meu coração, talvez porque tenha sido o primeiro que eu vi. Foi numa retrospectiva completa dedicada ao cinema dela, nem me lembro o ano. Tudo em 35mm cristalino na enorme tela do Cinesesc.
Bom Trabalho é uma adaptação livre de Billy Budd, de Herman Melville, e acompanha um batalhão da Legião Estrangeira francesa no Djibouti, com especial atenção entre a relação do comandante Galoup e o jovem recruta Gilles Sentain. A história do filme tem algo da primeira parte do Nascido para Matar, de Stanley Kubrick, em que um comandante trata mal, castiga e abusa de um recruta indisciplinado. Mas aqui no filme de Claire Denis essa relação ganha camadas sensoriais e psicológicas. Ela filma os corpos em belas coreografias, enfatizando o erotismo masculino e as tensões desse grupo de machos encerrado no meio da paisagem árida.
Além disso tem Denis Lavant, um dos grandes atores do nosso tempo, trilha musical misturando Khaled, Benjamin Britten e Coronna, e uma das melhores cenas finais do cinema contemporâneo.
Bom Trabalho é está disponível no Filmicca
vale a pena ver pela primeira vez (e pela segunda, terceira…)
Corrida Sem Fim | dir. Monte Hellman - 1971 - 102 mins
Talvez você nunca tenha ouvido falar de Monte Hellman nem de Corrida Sem Fim. Um dos cineastas da Nova Hollywood, Hellman trabalhou muitos anos com o produtor Roger Corman e em suas obras mais autorais fez filmes simples e desafiadores ao mesmo tempo.
Aqui, dois jovens nomeados apenas como “o motorista” e “o mecânico” saem pela estrada procurando corridas de carros amadores para ganhar um trocado. Encontram diversos personagens ao longo do trajeto, interagem com anônimos, com as estradas e a paisagem americana. E é isso. Um filme que tira o drama dos rostos, do movimento das coisas, da velocidade, do antagonismo entre o silêncio dos protagonistas e as pessoas falantes que encontram pelo caminho.
Hellman também escalou um elenco curioso, com os músicos James Taylor e Dennis Wilson, do Beach Boys, como protagonistas.
Corrida Sem Fim está disponível aqui na Locadora do Povo*
guilty pleasure
Curtindo a Vida Adoidado | dir. John Hughes - 1986 - 103 mins
Você não esperava por essa. Mas o dia de curtição de Ferris Bueller é um dos filmes que eu mais adorava ver na sessão da tarde dublado na televisão. Demorei muitos anos para assistí-lo pela primeira vez com som original e conhecer as vozes de Matthew Broderick, Alan Ruck e Mia Sara.
Curtindo a Vida Adoidado é um exemplo transparente do cinema mostrar a subversão da ordem. Não é simplesmente uma questão intelectual: é mostrar o corpo interagindo de forma inesperada com as coisas, subverter o tempo do mundo administrado (a escola, o trabalho, a família), contaminar o espaço regrado do desfile com uma performance juvenil e contagiante de Twist and Shout.
O cinema retrata essa subversão desde Georges Méliès, Charles Chaplin, Jacques Tati. E Curtindo a Vida Adoidado foi a porta de entrada do pequeno Raul para as possibilidades do cinema de bagunçar o estado das coisas.
Curtindo a Vida Adoidado está disponível no Telecine Play
lista insone
Eu tenho insônia recorrentemente. Em muitas delas, eu penso em listas temáticas de filmes.
Com o recente lançamento de Conclave nos cinemas brasileiros, fiquei pensando que não tem muitos filmes de ficção sobre papas. Mas de vez em quando aparece um papa aqui e ali no cinema. Então fiz uma lista de melhores filmes com aparições inesperadas do papa.
O Poderoso Chefão - Parte III, 1990, dir. Francis Ford Coppola
O Sequestro do Papa, 2023, dir. Marco Bellocchio
Temos um Papa, 2011, dir. Nanni Moretti
Corra que a Polícia Vem Aí 33 ⅓, 1994, dir. Peter Segal
Mudança de Hábito, 1992, dir. Emile Ardolino
polêmica da semana
Eu gosto de polêmicas. E acho que todos temos opiniões polêmicas. Toda semana eu vou mandar aqui uma opinião pouco comum. Às vezes meio vazia, algumas com conteúdo de verdade, outras só pra causar mesmo. Mas quero deixar vocês com essa pulga atrás da orelha…
Selton Mello está melhor que Fernanda Torres em Ainda Estou Aqui.
antes de partir…
Este primeiro número d’A Conversação é dedicado a alguns dos meus filmes favoritos. A partir do próximo número, farei seções mais “convencionais": filme no cinema, no streaming, um mais desconhecido, indicação de leitura.
Um agradecimento especial à Raquel Toledo, que me ajudou na concepção da newsletter com opiniões e dicas preciosas, além da revisão dos textos e o apoio cotidiano. Outro agradecimento para A Lábia (a.k.a Ana Lima Cecílio) que, como vocês podem conferir, foi uma inspiração pr’A Conversação. E um terceiro agradecimento à minha sogra Ana Marília que fez esse primeiro número acontecer.
*Importante: os filmes da Locadora do Povo ficam disponíveis por 36 horas depois da publicação desta newsletter.
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