No último domingo, dia 4 de maio, Donald Trump fez o seguinte anúncio: “Estou autorizando o Departamento de Comércio e o Representante de Comércio dos Estados Unidos a iniciar imediatamente o processo de imposição de uma tarifa de 100% sobre qualquer filme que entre no nosso país e tenha sido produzido no exterior”.
Apesar de estar dentro da atual política de tarifas do governo estadunidense, a investida sobre filmes surpreendeu a todos. Seria esse o momento de reorganização política e econômica para o florescimento dos cinemas nacionais frente ao domínio ostensivo de Hollywood e dos filmes estadunidenses nas salas ao redor do mundo?
Muita calma nessa hora…
Lendo a notícia e o comunicado por inteiro dá para perceber que o principal alvo não é a importação de filmes em língua estrangeira, mas as produções filmadas em outros países. Há pelo menos uns trinta anos Hollywood não só exporta filmes, como sets de filmagem inteiros. Quando o sistema de estúdio entra em crise e o cinema vai às ruas a partir dos anos 1950, o modo de produção hollywoodiano colapsa. A força dos sindicatos dos trabalhadores das diferentes áreas técnicas se soma a isso e filmar em solo estadunidense fica cada vez mais caro. Então os produtores percebem que filmar fora dos EUA, pleiteando incentivos fiscais e benesses financeiras, além de mão de obra mais barata em outros países, diminuiria os custos de filmagem.
Isso é evidente nos grandes filmes transnacionais, como os inúmeros Missão Impossível e congêneres de espionagem. Também filmes de guerra ou mesmo a saga Os Vingadores. Mas mesmo quando ambientados nos EUA, muitos filmes são filmados em outros países, como o recente O Brutalista. Algumas matérias sobre o assunto apontam como Canadá, países do Leste europeu e a Austrália são os principais locais de filmagem dos filmes hollywoodianos hoje. Los Angeles aparece apenas em sexto lugar nesse ranking.
É o compasso do capitalismo estadunidense no final do século XX. Acontece com celulares, bolas de basquete, camisetas de times, calça jeans, relógios, jóias, bolsas de luxo. Por que seria diferente com o produto cultural mais afinado com os rumos do capitalismo moderno? Designed in US, made in…
E como em todos esses outros produtos, a política de Trump visa trazer as fábricas de volta para os Estados Unidos num delírio do grande poder americano dos míticos anos 1950 - diga-se de passagem: último suspiro do sistema de estúdio da Hollywood clássica. Ainda mais porque não está claro como será aplicada essa tarifa. Não sabemos como isso vai afetar o volume de produção hollywoodiano, por um lado, nem como isso vai incidir na taxação de filmes de língua estrangeira, que já ocupam um lugar pequeno no mercado dos EUA.
Mas… não custa sonhar que isso pode rearticular a estrutura do mercado de cinema no mundo. Isso porque o cinema sempre foi uma questão de Estado para o governo estadunidense. Ou, como o próprio Trump deixa claro em seu comunicado, uma questão de segurança nacional. A Motion Pictures Association (MPA), uma espécie de sindicato dos produtores junto ao Departamento de Estado, nasceu, viveu e vive ancorada na política externa americana, representando os interesses dos produtores de cinema e dos governantes ao mesmo tempo.
Se o livre mercado é uma bandeira da política estadunidense, no caso do cinema é quase um mantra. Departamento de Estado e MPA atuaram historicamente para impedir a taxação dos filmes americanos nos diversos países. “Os melhores filmes vão vencer no mercado” é o argumento. Caso a retórica não fosse o bastante, o governo entrava com pressão política e econômica em outras áreas. Como um professor meu explicou certa vez, se o Brasil taxa o filme americano, os EUA taxam a laranja brasileira, e aí a pressão política fica forte.
Agora, a depender das taxações a filmes de países estrangeiros, o “efeito colateral” pode ser uma benção. Abre-se a brecha para um taxação recíproca dos filmes americanos, o que tornaria sua distribuição e circulação no país mais complicada. Ou ainda, aumentaria a arrecadação de imposto para a cadeia nacional de audiovisual. No mínimo, uma pequena desarticulação das produções estadunidenses (que ficariam mais caras) pode abrir espaço para os cinemas nacionais.
Para o Brasil, é o momento de ligar um alerta e pensar em políticas públicas para aproveitar esse possível corte disruptivo do modelo de produção hollywoodiano atual. No final de “Trajetória no subdesenvolvimento”, texto importantíssimo para entender o cinema brasileiro, escrito em 1973, o crítico Paulo Emílio Sales Gomes diz que “o cinema brasileiro não possui força própria para escapar ao subdesenvolvimento” e depende “da reanimação sem milagre da vida brasileira”.
São raras as oportunidades deixadas pelos EUA e sua política estrangeira em relação ao comércio de filmes. Sinceramente, acredito que nada vai mudar: o imaginário colonizado está além da economia (e as empresas de audiovisual americanas sabem disso). Mas são raros os momentos em que os Estados Unidos baixam a guarda como o que se avizinha agora. É preciso reanimar a vida brasileira, é preciso muita hora nessa calma.
cinema
Um filme Minecraft | Jared Hess - 2025 - 101 mins
Olha, eu não esperava nada. Um filme Minecraft parecia só mais um exemplar de adaptação de videogame com o objetivo de criar uma franquia, na esteira de Sonic e Super Mario Bros. Com o primeiro, a semelhança está na escolha de um ator com muita personalidade para capitanear o projeto; já com o segundo, no sucesso duradouro do jogo que dá origem ao filme. Assim, tudo indicava mais um produto padrão com história heróica, humor duvidoso, easter eggs para a fanbase e trilha musical nostálgica.
Mas ao contrário dos exemplos anteriores, Minecraft é outra coisa. Tira onda do heroísmo fazendo piada com as regras de superação das personagens, através de um Deus ex Machina no final. Tira onda dos fãs do jogo e do universo ficcional ao abusar do tom farsesco nas explicações sobre o funcionamento do mundo de Minecraft, como um grande manual de instruções desnecessário, na interpretação debochada de Jack Black. Tira onda da nostalgia com o personagem de Jason Momoa, um gamer dos anos 1980 que não conseguiu sair da “adultescência” e adota um discurso de coach ainda que sua vida seja um grande fracasso. Há até uma situação lynchiana da diretora da escola se relacionando com um camponês do mundo superior perdido nos EUA.
Minecraft traz ainda alguns dados de realidade ao mostrar o cotidiano da pequena cidade em que as personagens vivem. Nada acontece e a vida é dura por lá, as pessoas precisam de vários empregos e dependem economicamente de uma fábrica de batatas fritas. O “mundo superior” ganha outros contornos, quando lá se valoriza a criatividade e o impossível, enquanto no “nosso mundo” é preciso ser professor de artes e educação física, ao mesmo tempo, para ter uma renda digna.
Sendo sincero de novo: tudo isso para apontar que apesar de não ser um grande filme, Minecraft não é um filme qualquer. Tem consciência de seu lugar na indústria e seu humor - que lembra o de Escola de Rock em vários momentos - sustenta o interesse pela narrativa que não tem nada de muito relevante. Ainda assim, é um filme de boas risadas e que tem coisa para se pensar, o que é raro nesse tipo de produto-padrão atual.
Um filme Minecraft está em cartaz nos cinemas.
se você viu …
Pecadores | dir. Ryan Coogler - 2025 - 138 mins
veja…
O príncipe das trevas | dir. John Carpenter - 1987 - 102 mins
Pecadores não me pegou, talvez porque o buzz em cima do filme estivesse muito grande. Pessoas confiáveis gostaram muito do filme. Achei apenas OK. Divertido. Bom ritmo. Engraçado em alguns momentos. Com música boa. Mas que abusa de recursos para explicar suas intenções temáticas aos espectadores, explicitando a metáfora do filme o quanto pode; e muitos flashbacks para relembrar o que acabou de ser visto. Um filme que não confia no público e deixa isso muito claro o tempo todo. Isso sem contar que é praticamente uma refilmagem de Um drink no inferno, cult de Robert Rodriguez com roteiro de Quentin Tarantino, estrelado por dois irmãos mafiosos que querem atravessar a fronteira para começar uma nova vida e passam a noite num bar dominado por vampiros.
Por isso mesmo, não indico o filme de Rodriguez (e também porque não é um grande filme. É OK. Divertido. Bom ritmo. Engraçado em alguns momentos. Com música boa), mas um dos grandes filmes de um dos meus diretores favoritos e que também lida com possessão - no caso, demoníaca. A trama toda é ambientada em espaços fechados, relacionamentos complexos entre as personagens, com muita tensão e, ao mesmo tempo, leveza da encenação, precisão do ritmo e dos planos, confiando no olhar do espectador. Em certa medida, O príncipe das trevas, de John Carpenter, é o tipo de filme de horror ao qual Coogler faz referência, mas muito maior enquanto cinema.
Pecadores está disponível no cinema.
O príncipe das trevas está disponível na Locadora do povo.
streaming
Akira | dir. Katsuhiro Ôtomo - 1991 - 119 mins
Certa vez, uma entrevistadora perguntou ao escritor estadunidense William Faulkner:
ENTREVISTADORA: Algumas pessoas dizem que não conseguem entender o que o senhor escreve, nem mesmo depois de ler duas ou três vezes. O que o senhor poderia lhes sugerir?
FAULKNER: Que leiam quatro vezes.
Eu aposto que a maioria das pessoas ao assistirem a Akira pela primeira vez não entendem nada. Eu não entendi quando vi no início da madrugada na TV. Pra ser mais exato, na Band sábado à noite, uma programação esquizofrênica que consistia em um sábado de filme cult, outro de Emanuelle. Tudo o que um rapaz pré-adolescente heterossexual precisa para crescer com a saúde mental em dia.
Também aposto que a maioria, na segunda tentativa, também não entendeu muito bem o que se passa em Akira. Não faz mal. Veja uma terceira vez. Provavelmente, você vai entender um pouco, não tudo. Ou talvez não seja para entender mesmo…
Akira está disponível no Mubi.
li o livro…
Limonov | Emmanuel Carrère - ed. Alfaguara - 344 pp.
vi o filme…
Limonov: O Camaleão Russo | dir. Kirill Serebrennikov - 2024 - 133 mins
O livro de Emmanuel Carrère conta a trajetória do poeta e romancista Eduard Limonov, posteriormente ativista político criador do partido nazbol russo, a partir de pesquisa e dos relatos do próprio autor em seus livros em primeira pessoa. Carrère faz uma narrativa sobre sua própria pesquisa, com apontamentos sobre seu personagem e também sobre a realidade dos anos finais da União Soviética, traçando uma relação entre a Rússia e Limonov. É um grande livro sobre um “homem sem qualidades” que representa um pouco das fraturas da sociedade russa na passagem do comunismo para o capitalismo selvagem dos anos 1990, com uma forma peculiar e um posicionamento do autor muito difícil de transpor para o cinema.
E aí, o filme de Serebrennikov… bem, o filme parece completamente perdido sobre o que fazer. Como biografia, é bastante disperso; como forma, é completamente histérico. Não encosta na questão social que o livro traz tão latente a partir de Limonov. Joga uma crítica solta e vazia a Putin para se posicionar sobre algo que não foi chamado - nem se colocou para isso.
Quando Limonov foi selecionado para o Festival de Cannes de 2024 fiquei com a pulga atrás da orelha. Como esse livro vai virar filme? No fim das contas, valeu a máxima da grande literatura impossível de virar bom cinema. Nessa, o filme sai perdendo por nem se afastar nem se aproximar muito da obra literária; apenas transpor parte das peripécias para a tela.
Limonov: O Camaleão Russo está disponível nos cinemas.
Limonov está à venda aqui.
polêmica da semana
Há duas semanas aconteceu uma polêmica envolvendo o novo filme de Anna Muylaert, Geni e o Zepelim, adaptação da canção de Chico Buarque, parte da Ópera do Malandro. O que digo sobre isso: Anna Muylaert sempre foi uma cineasta medíocre; uma roteirista competente, na melhor das hipóteses, que filmava os próprios roteiros por pura convenção do modo de financiamento do cinema brasileiro. Todo o hype em torno dela nos últimos dez anos foi delírio.
antes de partir
Não desistam d'A conversação! Ajudem a espalhar a palavra e as imagens dos filmes por aí.
Obrigado à Raquel Toledo pela revisão final do texto por me apresentar o livro no seu clube de leitura russa, o Rússia Todo Mês.
Tem links para todos os filmes, afinal meu desejo é fazer as pessoas verem mais filmes, por mais difícil que seja.
Importante: os filmes da Locadora do povo ficam disponíveis por 36 horas depois da publicação desta niusla.
seja rebelde: veja filmes!
Ajude a aumentar essa conversação.
a única coisa realmente legal no filme do Limónov é quando o Carrerè aparece.